quinta-feira, 28 de agosto de 2008

O Tio Carlos sempre foi para mim um herói sem rosto, principal tema de conversa em longas noites de amigos comuns.

Sabia-lhe da obsessão pelas marcas do tempo…ninguém como ele tinha a perfeita noção da quantidade exacta de pó que cada livro, cada revista, cada jornal deveria suportar na lombada, na capa ou no título de caixa alta com que se expunha à cobiça dos olhares para que pudesse ser considerado objecto de culto.

Todas as manhãs, antes de abrir a livraria, munia-se de um espanador de penas de pato seleccionadas e, com um pintor dando as últimas pinceladas na obra acabada de fazer, retirava com gestos rápidos o pó em excesso…de longe, com ar crítico, avaliava o resultado final e, só então, se permitia pendurar na porta de entrada o cartão esmaecido pelo sol onde se lia:

ABERTO

Sabia-lhe das qualidades de anfitrião.
Vindo da luminosidade da rua, cliente de primeira viagem que ultrapassasse a porta de entrada ficava intimidado - o omnipresente cheiro dos livros, a altura das estantes, o comprimento das mesas, a luz difusa dos pequenos candeeiros, as pilhas de revistas inundando os poucos espaços livres impunham uma solenidade de biblioteca beneditina.

- “Faça o favor de entrar... esteja à vontade…sinta-se em casa..."

Com estas palavras, banhadas por um sorriso tranquilo de boas-vindas, eram recebidos os novos clientes …

Para os mais antigos, para os habituais, o Tio Carlos reservava um outro tipo de acolhimento - era como se recebesse um membro da família há muito tempo ausente.
Corria para o abraço mostrando o último exemplar adquirido, valorizando o bom estado da capa, o ano de edição, o pormenor da dedicatória, a honra do autógrafo do autor

Sabia-lhe dos frequentes problemas financeiros - a livraria era uma amante gastadora, um desastre de tesouraria espalhado por intermináveis estantes repletas, de mesas com candeeiros antigos onde qualquer cliente podia, na penumbra solene da sala, consultar cada uma das obras expostas ou, bem instalado em sofás de couro velho, folhear as amarelecidas páginas dos diários ou semanários com largos anos de notícias atrasadas.

Prova evidente das dificuldades de tesouraria, era a cordão finamente entrançado a seda de damasco pendendo do centro do tecto, solitário. Em tempos idos, sustentara um magnífico lustre de cristal bávaro - a impaciência dos credores levara esse bem precioso.

Convém dizer que o Tio Carlos sofria de um problema grave: reputado conhecedor do mercado do livro antigo, muito exigente na compra e negociador arguto, a incapacidade de se desfazer dos tesouros acumulados tornava impossível qualquer equilíbrio entre o deve e o haver da sua desastrosa contabilidade.
Seria muito difícil, para não dizer impossível, que alguém, numa primeira abordagem, lhe conseguisse arrancar o preço de qualquer obra e a demora na resposta era tanto maior quanto menos familiar fosse a fisionomia do cliente e mais raro o exemplar em apreço - a primeira tentativa era ignorada, sempre; à segunda, fazia-se desentendido e, questionado pela terceira vez mudava de assunto. O cliente, convencido de que o que estava em causa era um aumento exagerado do preço, abandonava a livraria amaldiçoando a perda de tempo.

Era então que um sorriso de suave felicidade iluminava o rosto do Tio Carlos: o livro continuaria na prateleira por mais algum tempo, até que um novo interessado surgisse.

Mas nem sempre o negócio, para ser mais exacto a ausência de negócio, se processava de forma tão pacífica.

Alguns clientes, segurando com firmeza o exemplar pretendido, insistiam, queriam porque queriam, obstinavam-se na compra -gente de convicções é assim. Então o Tio Carlos abandonava a táctica da surdez, da distracção, enveredava por outros caminhos: que não era uma peça tão rara assim, que o preço estava até um pouco acima do valor real, que tinha um defeito de impressão no início do terceiro capítulo…
Esgotada a capacidade de argumentação e a paciência do interlocutor, vinha o golpe baixo: convidava o cliente para almoçar oferecia um bom vinho, conhaque do melhor, pagava uma conta astronómica - tudo era feito para que o livro, aquele livro, não abandonasse o quarto lugar da segunda prateleira na estante da esquerda ao fundo. Ele sabia o lugar exacto de cada um dos seus livros que se transformava na menina dos seus olhos no exacto momento em que aparecesse um hipotético comprador.
O Tio Carlos não queria vender, nunca…

A obsessão adquirira foros de paranóia. Sentado no sofá favorito, rodeado pelos exemplares mais preciosos, sorriso na boca, olhos fixos num horizonte de estantes e prateleiras, o Tio Carlos sonhava com leilões de bibliotecas na Sotheby’s, nessa longínqua Londres para onde nunca viajara.

Na segunda-feira os amigos estranharam que a porta se mantivesse fechada e as luzes acesas, todo o dia.
Na terça-feira a preocupação tornou-se mais séria quando a dona da pensão onde o Tio Carlos dormia fez saber a um enviado do grupo de amigos que ele não aparecia há dois dias - nem para dormir, nem para pagar os muitos meses de aluguer em atraso, suspirava ela, muitos meses em atraso, podem acreditar.
Na quarta-feira, sem qualquer resposta aos repetidos contactos telefónicos, os amigos do tio Carlos resolveram chamar polícia para que se arrombasse a porta da livraria.

Suspenso pelo pescoço ao cordão de seda de damasco finamente entrançado, o corpo do Tio Carlos balançava-se, dolente, ao lado da pilha de treze volumes Encyclopaedia Britannica de onde se tinha lançado rumo à eternidade com o primeiro exemplar da Playboy firmemente preso de encontro ao peito.

A seus pés, uma citação judicial concedia-lhe o prazo de uma semana para entregar o negócio à administração dos credores.

Foi a primeira vez que vi o Tio Carlos - e a última, também.

(Tio Carlos)

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