segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Nossa senhora da avenida
De saia curta
Perna comprida
Riso colado na boca antiga
Sonho escondido
Corpo dorido
Nossa senhora
Navalha aberta
O medo espreita
A fome aperta
Nossa senhora do amor mal feito
Corpo alugado
Preço a preceito
Lençol cansado
Quarto sem jeito
Nossa senhora da avenida
De saia cruta
Perna comprida
A noite é longa
O riso é breve
E a dor não dói
Magoa
Leve
Nossa senhora da saia curta
Perna comprida
Riso escondido
Farrapo sujo de primavera
Corpo caído
Corpo desfeito
Nossa senhora dos sem ternura
Nossa senhora dos amor mal feito...
...ninguém te espera...

(Avé-Maria da puta)

sexta-feira, 29 de agosto de 2008

é urgente!!!
arranjem-me um deus!
não um deus qualquer
que eu sou exigente
um deus nascido de fêmea-mulher
e que não tenha igreja
nem more num altar
um deus que fique onde eu o veja
um deus com quem possa falar
não precisa refulgir de luz
não é pra pendurar
nem pra pregar na cruz
que importa se a mãe for prostituta
e o pai falsário
eu quero um deus que vá à luta
que sofra
que transpire por um salário
que comigo beba um copo
ao sol poente
que me ajude a nadar contra a corrente
e quando eu estiver próximo do fim
nessa névoa doce
junto ao mar
que tenha sido o deus em quem eu quis acreditar
sabendo que ele
sempre
acreditou em mim

arranjem-me um deus!
é urgente!!!

(deus de encomenda)
ladram-me à saudade
os silêncios do caminho percorrido
aqui
já não se chora
nem se ri

ah este amargo medo
de não ter sido...

(poema breve 27)

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

tudo o que dei à vida
ela me deve
das mágoas que me deu
fiz uma festa
mas foi tão curta
a madrugada breve
e como corre
o tempo que me resta

se do que fui me faço
dia a dia
gritando raivas
ventos
e cansaço
se a dor desenho em mim
e traço a traço
antecipo hora a hora
a agonia
então serei maré
espuma
e mar
então eu vou ser praia…
e descansar



(poema do tempo que se escapa )
O Tio Carlos sempre foi para mim um herói sem rosto, principal tema de conversa em longas noites de amigos comuns.

Sabia-lhe da obsessão pelas marcas do tempo…ninguém como ele tinha a perfeita noção da quantidade exacta de pó que cada livro, cada revista, cada jornal deveria suportar na lombada, na capa ou no título de caixa alta com que se expunha à cobiça dos olhares para que pudesse ser considerado objecto de culto.

Todas as manhãs, antes de abrir a livraria, munia-se de um espanador de penas de pato seleccionadas e, com um pintor dando as últimas pinceladas na obra acabada de fazer, retirava com gestos rápidos o pó em excesso…de longe, com ar crítico, avaliava o resultado final e, só então, se permitia pendurar na porta de entrada o cartão esmaecido pelo sol onde se lia:

ABERTO

Sabia-lhe das qualidades de anfitrião.
Vindo da luminosidade da rua, cliente de primeira viagem que ultrapassasse a porta de entrada ficava intimidado - o omnipresente cheiro dos livros, a altura das estantes, o comprimento das mesas, a luz difusa dos pequenos candeeiros, as pilhas de revistas inundando os poucos espaços livres impunham uma solenidade de biblioteca beneditina.

- “Faça o favor de entrar... esteja à vontade…sinta-se em casa..."

Com estas palavras, banhadas por um sorriso tranquilo de boas-vindas, eram recebidos os novos clientes …

Para os mais antigos, para os habituais, o Tio Carlos reservava um outro tipo de acolhimento - era como se recebesse um membro da família há muito tempo ausente.
Corria para o abraço mostrando o último exemplar adquirido, valorizando o bom estado da capa, o ano de edição, o pormenor da dedicatória, a honra do autógrafo do autor

Sabia-lhe dos frequentes problemas financeiros - a livraria era uma amante gastadora, um desastre de tesouraria espalhado por intermináveis estantes repletas, de mesas com candeeiros antigos onde qualquer cliente podia, na penumbra solene da sala, consultar cada uma das obras expostas ou, bem instalado em sofás de couro velho, folhear as amarelecidas páginas dos diários ou semanários com largos anos de notícias atrasadas.

Prova evidente das dificuldades de tesouraria, era a cordão finamente entrançado a seda de damasco pendendo do centro do tecto, solitário. Em tempos idos, sustentara um magnífico lustre de cristal bávaro - a impaciência dos credores levara esse bem precioso.

Convém dizer que o Tio Carlos sofria de um problema grave: reputado conhecedor do mercado do livro antigo, muito exigente na compra e negociador arguto, a incapacidade de se desfazer dos tesouros acumulados tornava impossível qualquer equilíbrio entre o deve e o haver da sua desastrosa contabilidade.
Seria muito difícil, para não dizer impossível, que alguém, numa primeira abordagem, lhe conseguisse arrancar o preço de qualquer obra e a demora na resposta era tanto maior quanto menos familiar fosse a fisionomia do cliente e mais raro o exemplar em apreço - a primeira tentativa era ignorada, sempre; à segunda, fazia-se desentendido e, questionado pela terceira vez mudava de assunto. O cliente, convencido de que o que estava em causa era um aumento exagerado do preço, abandonava a livraria amaldiçoando a perda de tempo.

Era então que um sorriso de suave felicidade iluminava o rosto do Tio Carlos: o livro continuaria na prateleira por mais algum tempo, até que um novo interessado surgisse.

Mas nem sempre o negócio, para ser mais exacto a ausência de negócio, se processava de forma tão pacífica.

Alguns clientes, segurando com firmeza o exemplar pretendido, insistiam, queriam porque queriam, obstinavam-se na compra -gente de convicções é assim. Então o Tio Carlos abandonava a táctica da surdez, da distracção, enveredava por outros caminhos: que não era uma peça tão rara assim, que o preço estava até um pouco acima do valor real, que tinha um defeito de impressão no início do terceiro capítulo…
Esgotada a capacidade de argumentação e a paciência do interlocutor, vinha o golpe baixo: convidava o cliente para almoçar oferecia um bom vinho, conhaque do melhor, pagava uma conta astronómica - tudo era feito para que o livro, aquele livro, não abandonasse o quarto lugar da segunda prateleira na estante da esquerda ao fundo. Ele sabia o lugar exacto de cada um dos seus livros que se transformava na menina dos seus olhos no exacto momento em que aparecesse um hipotético comprador.
O Tio Carlos não queria vender, nunca…

A obsessão adquirira foros de paranóia. Sentado no sofá favorito, rodeado pelos exemplares mais preciosos, sorriso na boca, olhos fixos num horizonte de estantes e prateleiras, o Tio Carlos sonhava com leilões de bibliotecas na Sotheby’s, nessa longínqua Londres para onde nunca viajara.

Na segunda-feira os amigos estranharam que a porta se mantivesse fechada e as luzes acesas, todo o dia.
Na terça-feira a preocupação tornou-se mais séria quando a dona da pensão onde o Tio Carlos dormia fez saber a um enviado do grupo de amigos que ele não aparecia há dois dias - nem para dormir, nem para pagar os muitos meses de aluguer em atraso, suspirava ela, muitos meses em atraso, podem acreditar.
Na quarta-feira, sem qualquer resposta aos repetidos contactos telefónicos, os amigos do tio Carlos resolveram chamar polícia para que se arrombasse a porta da livraria.

Suspenso pelo pescoço ao cordão de seda de damasco finamente entrançado, o corpo do Tio Carlos balançava-se, dolente, ao lado da pilha de treze volumes Encyclopaedia Britannica de onde se tinha lançado rumo à eternidade com o primeiro exemplar da Playboy firmemente preso de encontro ao peito.

A seus pés, uma citação judicial concedia-lhe o prazo de uma semana para entregar o negócio à administração dos credores.

Foi a primeira vez que vi o Tio Carlos - e a última, também.

(Tio Carlos)

terça-feira, 26 de agosto de 2008

e
de repente
a mala estava pronta…

à porta
de orelhas tristes
o meu cão farejou o destino repetido
no silêncio das palavras mal contidas

a cama por fazer
os restos do café tomado à pressa
costas voltadas à ternura apagada no cinzeiro…

o mesmo vento frio na janela…

de novo
aquele olhar ausente
o hálito da solidão
nos lábios fechados ao beijo do adeus
e o acabar conjugado em tempo de denúncia
na lassidão dos gestos cansados

sobre a mesa
um molho de chaves arrefece….

porque há-de ser sempre tudo tão igual?

é a hora de partir
cão…
vamos embora…

(alone again, naturally)
dos meus silêncios
sabes tu
mãe
das marés de solidão
e dos barcos sem remos da tristeza
perdidos nos baixios da saudade
tu também sabes
mãe

das viagens que não fiz
das dores
que não querendo
eu guardei
dos sonhos sem regresso
apenas tu soubeste
mãe

…e como me contaste das coisas da liberdade
e das primaveras
que corriam mais
sempre mais
talvez de mais

diz-me
mãe
quando eu estiver para chegar
em que porto me esperas
em que cais?


(segundo poema da partida )